*entrevista originalmente publicada no Conjur
“Não há uma leniência celebrada no Brasil.” Quem afirma é o advogado especialista em Direito Empresarial Walfrido Jorge Warde Júnior. O ambiente inseguro para a celebração de acordos entre empresas e o Estado vem sendo criticado por ele há anos, mas, diante dos movimentos do Ministério Público Federal para cancelar o acordo assinado com o Grupo J&F, o assunto volta à tona.
A solução sugerida pelo advogado é a criação de um balcão único para negociação dos acordos de leniência. Seria uma comissão formada por todos os interessados por parte do Estado: Ministério Público, Advocacia-Geral da União, Controladoria-Geral da União, Tribunal de Contas da União, entre outros. Assim, quem firmasse acordo saberia que nenhum outro órgão se moveria para anular aquele contrato.
Segundo Warde, o problema da insegurança dos acordos não é a dissolução das empresas, que ficam impedidas de ressarcir o erário e a continuar em operação. Haverá um efeito dominó, diz, quando analisa que as empresas alvos da “lava jato”, especialmente as empreiteiras e a JBS, são “gigantes nacionais”. Os bancos serão os próximos atingidos, pois ficarão sem receber por empréstimos e financiamentos concedidos.
“O BNDES tem segurado, ninguém fala sobre isso, mas é uma consequência inevitável. Estamos falando da demolição do capitalismo brasileiro, das principais empresas brasileiras que tinham uma relação muito próxima e dependente com o Estado, uma relação que foi criminalizada”, prevê, em entrevista à revista Consultor Jurídico.
Mas os problemas do ambiente legal brasileiro não afetam apenas as grandes empresas que aparecem no noticiário, afirma Warde. Por falta de regras adequados, empresas são impedidas de crescer e buscar financiamento no mercado.
ConJur — Como o senhor avalia a disputa entre MP, AGU e CGU por protagonismo com os acordos de leniência?
Walfrido Warde — Adverti sobre essa disputa no livrinho “Um plano de ação para o salvamento do projeto nacional de infraestrutura”. Lá em 2015, apresentei junto com o Gilberto Bercovici e o José Francisco Siqueira Neto um projeto para tentar evitar a quebra das empresas de infraestrutura no Brasil.
ConJur — O que o livro propõe?
Walfrido Warde — Basicamente, a ideia é que se fizesse uma leniência com guichê único. Entendíamos que não era necessário ter uma lei, bastava criar um comitê com todos os envolvidos, TCU, CGU, AGU, MP, Cade, CVM e Banco Central, dependendo do caso e da especificidade empresarial. Já havia um prenúncio de crise cadastral das empreiteiras, elas não iam mais conseguir captar dinheiro, participar de licitações, receber nos contratos administrativos que tinham celebrado com a administração direta e indireta. Então a única maneira é que elas rapidamente superassem o problema, pagassem o Estado, ressarcissem a Petrobras. Era uma maneira de garantir rápido ressarcimento e impedir obstrução da espinha dorsal da economia brasileira, que era a infraestrutura.
ConJur — O que acha dos acordos assinados até agora?
Walfrido Warde — Não há uma leniência celebrada no Brasil. A da Odebrecht, celebrada com o Ministério Público, acabou de ter sua eficácia abatida pelo TRF-4, que disse que quem tinha que celebrar era a CGU. Aquelas como a da UTC, celebradas com a CGU, não são reconhecidas pelo Ministério Público. A balbúrdia que a gente antecipou de fato aconteceu.
ConJur — Ela deve chegar ao bancos privados, do sistema de financiamento, agora?
Walfrido Warde — Certamente. Eles deram fiança e vão ser cobrados mais cedo ou mais tarde. O BNDES tem segurado isso, ninguém fala sobre isso, mas é uma consequência inevitável. Estamos falando da demolição do capitalismo brasileiro, das principais empresas brasileiras que tinham uma relação muito próxima e dependente do Estado. Uma relação que foi criminalizada em grande parte.
ConJur — Em que sentido?
Walfrido Warde — Muita coisa que era normal passou a ser considerada crime. Doação de campanha por empresa não era crime. A atuação da operação “lava jato”, da Polícia Federal, do Ministério Público e do juiz Sergio Moro em Curitiba determina uma interpretação criminalizante do que não era criminalizado antes. Doação foi considerada propina.
ConJur — A regulamentação do lobby seria uma solução?
Walfrido Warde — Em primeiro lugar, precisamos ver que temos um combate à corrupção inconsequente. Ele se dá por meio de uma criminalização judiciária, e não legislativa, do que não era crime. Em segundo lugar, ele se dá no contexto da ampliação dos mecanismos de detecção da corrupção, do aparecimento do compliance, da colaboração premiada e da leniência para fins de incitar denúncias e colaborações. Nós precisamos de vias de abrandamento para a empresa. É preciso prender o corrupto e o corruptor, mas temos que manter a empresa em pé. E nós estamos destruindo as empresas.
ConJur — O senhor aponta um caminho para isso?
Walfrido Warde — A primeira coisa que a gente precisa é consertar a leniência no Brasil. Precisamos impedir que esses ciclos de desgraça e pujança parem de acontecer. E só uma reforma política é capaz de fazer isso. Uma reforma do financiamento de campanha, do lobby pré-eleitoral, do lobby pós-eleitoral, mas também uma disciplina de disclosure de relações público-privadas. O presidente da República não pode dizer que encontra quem ele quiser, na hora que quiser, do jeito que quiser. Isso não funciona na democracia. O presidente da República é nosso empregado, não um imperador. Para isso precisamos ter uma lei de disclosure: toda vez que um lobista, um agente privado, conversa com um agente público, isso tem de ser conhecido por alguém e registrado num portal de transparência. Isso inclui qual foi o tema a conversa, por que se encontraram, o que um disse para o outro, o que um pediu para o outro e o que o outro disse que ia fazer.
ConJur — Os Estados Unidos passaram por um momento de profusão de histórias de whistleblowers [delatores de dentro das empresas delatadas]. Isso deve ser regulamentado no Brasil? Existe espaço?
Walfrido Warde — Acho que sim. O que acontece é que as pessoas confundam a delação ou a colaboração com whistleblowing. A colaboração é feita por quem também praticou o crime. Tem um contrato com o Estado, apresenta provas e tem o direito a gozar do benefício previsto no acordo de colaboração. O whistleblower não necessariamente praticou o crime. Ele só quer a recompensa pela delação. Então ele sabe, viu que alguém praticou o crime e quer um benefício. Às vezes proteção, às vezes dinheiro. Resta saber se a sociedade quer isso ou não. Parece que quer.
Agora, no caso de JBS, a empresa não é colaboradora, mas os colaboradores que eram ex-administradores da JBS entregaram 1,8 mil agentes públicos com provas. Dizer que aquilo não merece um benefício, ou que o Ministério Público não deveria ter dado tanto benefício, me parece um equívoco, no mínimo. O Estado quer a prova, mas não quer dar o benefício? Então acabou com o instituto da colaboração premiada.
ConJur — O senhor citou a declaração de inconstitucionalidade do financiamento eleitoral por empresas. O Judiciário tem legislado quando trata das relações entre público e privado?
Walfrido Warde — Essa decisão da ADI 14.650 decorre de um artigo que eu escrevi em 2007, que é citado exaustivamente no voto do ministro Dias Toffoli. O título do artigo é A empresa pluridimensional. E eu dizia o seguinte: a empresa no Brasil é regulada apenas sob ponto de vista econômico, mas ela tem outras finalidades, políticas também. E nós temos uma incongruência grave entre a regulação política e a regulação econômica da empresa. As sociedades empresárias não podem celebrar obrigações de mero favor. Elas não podem doar. Elas só podem entreter relação de trocas econômicas no mercado. Então as sociedades empresárias, segundo o Direito Societário, só podem pagar se houver contraprestação. Do contrário, haveria uma violação de dever fiduciário do administrador. Por outro lado, a legislação eleitoral exigia que um pagamento feito por uma sociedade empresária a um político, candidato, seja um ato de diletantismo. Portanto, há uma incongruência entre a legislação eleitoral e a legislação societária. Tivemos a criminalização dessa conduta, mas o que eu dizia era que precisamos regular isso direito.
ConJur — Então qual o problema da decisão do Supremo?
Walfrido Warde — O ministro Toffoli pegou aquilo para fundamentar o seu entendimento a respeito do artigo 9º. Não é um entendimento absurdo – talvez seja inconveniente, mas não é absurdo – de que a empresa não poderia fazer doação de campanha, uma vez que isso caracterizaria um voto múltiplo. O melhor seria criar um modelo associativo de financiamento de campanha – uma coisa parecida com os PACs americanos – onde só associações podem doar para campanha. E aí empresas podem fazer parte de associações, mas as regras de governança dessas associações seriam muito estritas. Uma série de regras que, obviamente, estimulariam a formação de associações. A participação em mais de um PAC, por exemplo, seria proibida.
ConJur — A ideia das ações coletivas vingou nos Estados Unidos. Ela tem chance de emplacar aqui também?
Walfrido Warde — Pode ser. As empresas brasileiras que oferecem valores imobiliários nos Estados Unidos se sujeitam a uma disparidade regulatória. A Petrobras tem esse problema. No Brasil, a ação indenizatória é uma ação da companhia contra o administrador delinquente. E a companhia pode ter um substituto processual em algumas hipóteses, que é o próprio acionista. No modelo americano, que é um modelo totalmente diferente, o ressarcimento é direto, porque eles têm ação coletiva lá. Em vez de 300 mil ações, é uma ação contra a companhia. Na realidade brasileira, teríamos milhares de ações. Imagina o que significa para a administração da Justiça e o que significa para a administração da companhia. Nós vamos quebrar a empresa só com defesa.
Estamos em um contexto de corrupção sistêmica. Estamos com uma praça pública cheia de cadafalsos, de guilhotinas, de pelotões de fuzilamento e, em alguns casos, por coisas que a gente aceitou por décadas e décadas. Seria a mesma coisa que a Suprema Corte dos EUA dizer, por exemplo, que o os PACs eleitorais são corrupção. Eles teriam uma crise sistêmica de corrupção no da seguinte. E isso quebraria toda a economia deles.
ConJur — O senhor escreveu um projeto de Lei da Sociedade Anônima Simplificada. Mas vendo o ranking das maiores empresas do Brasil, fica claro que as S/As têm funcionado economicamente. Qual o problema da lei que temos hoje?
Walfrido Warde — A Lei da S/As é como um brinquedo Lego. As peças são simples, mas podemos montar coisas mais ou menos complexas de acordo com a organização delas. A base da Lei de Sociedades Anônimas está nas regras para companhias fechadas. Mas as S/As estão em um grau de sofisticação maior do que as companhias fechadas. Já a regulação das sociedades fechadas de pequeno e médio porte seria uma construção menos complexa, mas com as mesmas peças.
Vivemos num pais em que a economia não é só de titãs, é de quitandas também. No nosso projeto, basicamente olhamos para a regulação das anônimas como um Lego regulatório, usando o chassi da companhia fechada e, a partir dele, aumentamos um pouco o grau de sofisticação para uma anônima de pequeno porte. Mas é uma regulação menos complexa do que temos atualmente, para não engessar, não ficar caro demais ir ao mercado buscar financiamento de acionistas.
ConJur — Por que ainda é complexo demais?
Walfrido Warde — É difícil demais desmontar uma série de obstáculos e amarras legais que encarecem o manejo de uma sociedade anônima. Isso a torna menos útil para organizar a empresa de pequeno porte. Nós olhamos duas coisas: primeiro a disciplina das anônimas é amplamente consolidada. Existe desde 1976, é elogiável, tem várias qualidades. Seus defeitos vêm sendo testados há 40 anos no Judiciário, na arbitragem. Do outro lado, a disciplina das limitadas é muito criticada por ser muito lacunosa e ter uma série de defeitos. Isso na realidade brasileira. Em outros países nós encontramos tipos societários híbridos convenientemente disciplinados sob ampla autonomia.
ConJur — Sabe citar alguns países?
Walfrido Warde — Normalmente países de tradição anglo-saxônica, mas isso seguiu também para o Direito continental europeu. Nos anos 1970, apareceram nos Estados Unidos as primeiras limited liability company, as primeiras LLCs, as primeiras formas híbridas de sociedade. Então tem a possibilidade de contratar a sociedade do jeito que quiser, mas, ao mesmo tempo, usar a sociedade para emitir títulos de dívida, para captação. É combinação da fórmula de organização contratual com a fórmula institucional de uma empresa ou sociedade.
ConJur — Mas o que é exigido hoje que uma empresa menor não consegue cumprir?
Walfrido Warde — Para fazer IPO custa caro. A realização de registro de companhia aberta, registro de oferta, prospecto, tudo isso podia ser simplificado para ofertas menores. Além disso, tem os custos de constituição e manejo de uma S/A. Tem publicação obrigatória, pasme-se, até hoje em jornal impresso. Nós estamos no século XXI e as mídias físicas estão desaparecendo. Qual é a utilidade de ter publicação de convocação de assembleia ou de documentos fundamentais, como balanços e demonstrações financeiras, em um jornal físico, que vai ser jogado fora? Não faz sentido nenhum, a não ser para o lobby dos jornais.
ConJur — Numa época que falamos tanto de compliance, não seria contraditório aprovar uma legislação que tire essa rigidez?
Walfrido Warde — Estamos falando de duas coisas diferentes: uma coisa é governança corporativa e outra é compliance. Governança corporativa é um conjunto de técnicas de alocação de poder no contexto de uma empresa. O compliance é basicamente uma técnica de privatização de funções públicas, de funções estatais de detecção da corrupção.
ConJur — Com as restrições para buscar investimentos no mercado, as empresas pequenas ficam dependentes demais do Estado, dos financiamentos públicos?
Walfrido Warde — Todo mundo dependente demais do Estado no capitalismo em qualquer lugar do mundo. A teoria marxista, sob o ponto de vista descritivo, é impecável para explicar essa situação. Em um determinado momento, as taxas de lucratividade do capital caem e isso marca a viragem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, do Estado. O Estado passa a ser fundamental justamente para impedir uma crise de morte do capitalismo, porque ele traz recursos que são fundamentais para o capital, seja na geração de demanda, seja no financiamento subsidiado, seja no financiamento de pesquisa e tecnologia e aí por diante.
ConJur — As tais da relações promíscuas entre Estado e empresas privadas não, então, uma característica brasileira?
Walfrido Warde — Falam que no Brasil há uma promiscuidade na relação Estado-empresa porque o capital é muito dependente do Estado. Mas nos EUA também é. Vale lembrar que quem inventou e desenvolveu a Internet foi o Exército, o Estado, com trilhões e trilhões de dólares dos contribuintes. E quem ganhou dinheiro com a internet? As empresas do Vale do Silício. Natural que assim seja. As guerras representam trilhões e trilhões de serviços e produtos de empresas americanas sendo contratados pelo Estado. E assim é em todos os países capitalistas e naqueles menos capitalistas, como China e a Rússia.
ConJur — Empresas pequenas dependem mais do Estado que as grandes para captar dinheiro?
Walfrido Warde — Não. No quadro de desembolso do sistema BNDES de 2007 a 2014 é possível ver que as pequenas e médias receberam R$ 70 bilhões. As grandes receberam quase R$ 1 trilhão nesse período.
ConJur — E essa ideia de mais gente sair para o mercado aliviaria essa conta.
Walfrido Warde — Principalmente em um momento como esse em que tivemos uma brutal reversão dos mecanismos estatais em incentivo ao consumo, uma brutal reversão dos mecanismos estatais de fomento à atividade empresarial. O BNDES não é mais um banco de fomento, foi descaracterizado. Hoje não tem saída para a pequena e média empresa que não seja um empréstimo bancário supostamente com taxas de juros mais baratas no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal, mas nós sabemos que, no fim do dia, não são tão baratas assim.